
Suplementação de cálcio para cadelas gestantes
A suplementação de cálcio para gestantes é um erro frequentemente cometido por diversos criadores que, movidos pela boa intenção de facilitar a formação do esqueleto dos filhotes, pode prejudicar a saúde da fêmea e dificultar o parto (FASCETTI; DELANEY, 2012).
A hipocalcemia puerperal é uma condição metabólica grave, caracterizada pela queda acentuada das concentrações plasmáticas de cálcio ionizado, e acomete principalmente cadelas de porte pequeno com grandes ninhadas. Essa condição tende a se manifestar no periparto e pode vir a ocorrer até mesmo entre a segunda e terceira semana de lactação, período em que a produção de leite atinge o seu pico fisiológico. O aumento exponencial da demanda por cálcio, tanto para a formação do esqueleto dos filhotes quanto para a produção do leite e contrações uterinas, impoem um desafio metabólico significativo para o organismo materno (Davidson, 2012; LUZ et al., 2015).
A prática da suplementação indiscriminada de cálcio durante a gestação é um erro comum cometido por tutores e até mesmo por alguns profissionais, na tentativa de promover um parto mais tranquilo ou de garantir um desenvolvimento fetal mais robusto. No entanto, a suplementação inadequada pode ter um efeito contrário ao esperado, induzindo alterações na regulação hormonal do metabolismo do cálcio que comprometem a capacidade do organismo de mobilizar esse mineral nos momentos de maior necessidade, o que leva à inércia uterina (Fascetti & Delaney, 2012).
Caso o cálcio seja sempre fornecido em quantidades altas (de forma desbalanceada) pela via oral, o hormônio responsável por fazer seu recrutamento a partir do esqueleto fica quiescente (paratormônio) e, portanto, não consegue agir quando o cálcio plasmático se esgota devido à alta demanda do parto (KLEIN, 2014; IVA-NOVA; GEORGIEV, 2018). A ingestão, portanto, de cálcio não reflete a disponibilidade deste cálcio no momento do parto e não segue a premissa de “quanto mais, melhor”, pois o seu equilíbrio no sangue depende da ação dos hormônios: calcitonina (que deposita cálcio nos ossos) e paratormônio (que retira o cálcio dos ossos para disponibilizar na circulação.
Os sinais clínicos decorrentes da hipocalcemia são variados, progressivos e potencialmente fatais. Inicialmente, observa-se agitação, tremores musculares e incoordenação motora, que podem evoluir para anorexia, taquicardia, taquipneia, convulsões e hipertermia. Esses sintomas decorrem da falha na condução neuromuscular, uma vez que o cálcio é essencial para a liberação de neurotransmissores e para a contração muscular eficiente. Sem a devida intervenção, o quadro clínico pode evoluir rapidamente, comprometendo múltiplos sistemas orgânicos e até mesmo levar ao óbito (FELDMAN et al., 2014; LUZ et al., 2015).
Mesmo após a recuperação clínica, a fêmea que foi acometida por hipocalcemia puerperal não deve retornar à amamentação , em função do risco de nova ocorrência de hipocalcemia pela alta demanda de cálcio na formação do leite (FELDMAN et al., 2014; KLEIN, 2014; LOURENÇO, 2015).
A hipocalcemia pode ocorrer mesmo com nutrição adequada, completa e balanceada em cadelas pequenas e após trabalhos de parto extensos ou dificultosos. Após identificada a hipocalcemia, o tratamento, quando instituído de forma precoce e adequada, é eficaz e geralmente envolve a administração intravenosa de gluconato de cálcio a 10%, em doses de 0,2 a 0,5 mL/kg, com monitoramento rigoroso do ritmo cardíaco por meio de auscultas periódicas ou eletrocardiograma. Isso se faz necessário porque a reposição abrupta de cálcio pode provocar efeitos adversos, como arritmias, bradicardia, fibrilações e até parada cardíaca, tornando o acompanhamento profissional essencial durante todo o processo terapêutico (AROCH et al., 1998; DAVIDSON, 2012).
O parto é um evento fisiológico complexo que exige preparo, acompanhamento e conhecimento técnico por parte do médico veterinário. Em casos de falha na progressão do parto, especialmente quando associada à ausência de contrações uterinas efetivas (atonia uterina), é fundamental considerar que a hipocalcemia não é a única possível causa. O diagnóstico diferencial deve abranger também outras condições, como hipomagnesemia, fetos de tamanho incompatível com o tamanho do canal do parto, fadiga uterina, obesidade materna, baixa tonicidade abdominal, entre outros fatores.
Dessa forma, o manejo reprodutivo e nutricional de cadelas gestantes e lactantes deve ser realizado com base em evidências científicas sólidas, considerando não apenas a oferta de nutrientes, mas também o equilíbrio fisiológico, a capacidade de mobilização de reservas corporais e a individualidade de cada paciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AROCH I, OHAD DG, BANETH G. Paresis and unusual electrocardiographic signs in a severely hypomagnesaemic, hypocalcaemic lactating bitch. Journal of Small Animal Practice, v. 39, p.299-302, 1998.
DAVIDSON, A. P. Reproductive Causes of Hypocalcemia. Topics in Companion Animal Medicine, v. 27, p. 165- 166, 2012.
FASCETTI, A. J.; DELANEY, S. J. Applied Veterinary Clinical Nutrition. 1. ed. Iowa: Wiley-Blackwell, 2012.
FELDMAN, E. C. et al. Canine and Feline Endocrinology. 4th.ed. St. Louis, Missouri: Elsevier, 2014.