

Uso de fitas urinárias na mensuração da glicorraquia e proteinorraquia em cães com afecções neurológicas centrais
O fluído cerebroespinal (FCE) é um ultrafiltrado do sangue e sua análise tem um papel importante na identificação de enfermidades do sistema nervoso central. A análise do FCE é composta pela avaliação física, química e citológica, e dois importantes parâmetros na avaliação química são a mensuração de proteínas (proteinorraquia) e a de glicose (glicorraquia).
O método padrão para análise das concentrações liquóricas de proteína e glicose é a bioquímica úmida. Todavia, tem-se utilizado a fita urinária, sem nenhuma comprovação da sua confiabilidade, como método alternativo rápido para estimar, de maneira qualitativa, tais concentrações. Portanto, objetivou-se comparar os resultados da proteinorraquia e da glicorraquia, mensuradas na fita urinária e na bioquímica úmida, de cães com afecções neurológicas centrais.
O fluído cerebroespinal (FCE) envolve e permeia as estruturas do sistema nervoso central (SNC) - o encéfalo e a medula espinal (Dewey & Da Costa; 2017). É formado a partir do ultrafiltrado do sangue capilar através do plexo coroide contido nos ventrículos encefálicos. Sua composição é similar ao plasma sanguíneo, mas com menores concentrações de proteínas, glicose e celularidade (Deisenhammer et al., 2011). Deste modo, a análise dos componentes do FCE tem um papel importante na identificação de enfermidades do SNC, assim como o hemograma o tem na avaliação de doenças sistêmicas (Macneill et al., 2018).
A análise do FCE é composta pela avaliação física, química e citológica. Sua alta sensibilidade, torna os resultados relevantes no processo de investigação etiológica, porém, sua baixa especificidade faz com que os resultados raramente levem ao diagnóstico definitivo. Na avaliação química, a mensuração de glicose no FCE (glicorraquia) e a mensuração de proteínas (proteinorraquia) no FCE são dois parâmetros fundamentais (Di Terlizzi & Platt, 2006).
A proteinorraquia fornece indicativos de distúrbios da barreira hematoencefálica e estará aumentada (hiperproteinorraquia) devido a causas infecciosas, inflamatórias, vasculares e neoplásicas (Di Terlizzi, 2006; Di Terlizzi, 2009). Já a glicorraquia, quando tem seus valores diminuídos (hipoglicorraquia) em relação a glicemia, indica consumo, por aumento de metabolismo, como por exemplo em processos infecciosos causados por microrganismos glicolíticos (Coles, 1986). Em contrapartida, na literatura veterinária ainda não está claro qual seria a relevância da diminuição das proteínas e do aumento da glicose no FCE.
O método padrão para análise das concentrações liquóricas de proteína e glicose é a bioquímica úmida. Por outro lado, sabe-se que, de maneira anedótica, tem-se utilizado a fita urinária como método alternativo rápido para estimar, de maneira qualitativa, tais concentrações. Em humanos, estudos observaram correlação fidedigna quando compararam os resultados da glicorraquia e da proteinorraquia mensuradas na fita urinária e na bioquímica úmida (Noman et al., 2021; Manjunath et al., 2022; Joshi et al.,2013).
Contudo, na medicina veterinária, no conhecimento dos autores, não há estudos que comprovem a confiabilidade desta técnica alternativa para a espécie canina. Acredita-se que caso os resultados de ambas as técnicas foremsejam correspondentes, a fita urinária possa ser um método alternativo de auxílio diagnóstico de fácil manuseio, pouco oneroso e rápido, para ser implementado na rotina.
Foi realizado um estudo prospectivo, utilizando-se 22 amostras de FCE de cães de qualquer raça, idade, sexo e peso, com afecções neurológicas centrais. A glicose e a proteína de cada amostra de FCE foram mensuradas utilizando fita urinária e bioquímica úmida (padrão ouro) para comparação dos resultados de ambas as técnicas. Na primeira técnica, foi realizado o gotejamento de FCE até a cobertura das áreas reagentes da fita urinária Uriquest Plus Vet® (Labtest. Lagoa Santa, Minas Gerais, Brasil). A leitura colorimétrica foi feita por um único avaliador experiente, seguindo as instruções do fabricante. Já o método de bioquímica úmida foi realizado por meio de aparelho automatizado CM 250® (Wiener. Riobamba, Rosario, Argentina) utilizando kit comercial (Proteína Sensível®; Glicose®. Biotécnica. Varginha, Minas Gerais, Brasil).
Os valores quantitativos da bioquímica úmida são expressos em mg/dL, enquanto os da fita urinária são qualitativos, expressos em número de cruzes, as quais correspondem à um intervalo de valores em mg/dL. Para permitir a comparação entre os resultados das diferentes técnicas, os mesmos foram convertidos em escores, de acordo com o descrito na Tabela 1. Os escores foram elaborados a partir das escalas fornecidas pelo fabricante das fitas urinárias.
Tabela 1 – Conversão em escores das concentrações de proteinorraquia e glicorraquia mensuradas por bioquímica úmida e fita urinária
Escore |
Proteína |
Glicose |
||
|
Fita |
Bioquímica (mg/dL) |
Fita |
Bioquímica (mg/dL) |
0 |
negativo |
0-14 |
normal |
0-39 |
1 |
traços |
15-29 |
traços |
40-99 |
2 |
+1 |
30-99 |
+1 |
100-249 |
3 |
+2 |
100-499 |
+2 |
250-499 |
4 |
+3 |
≥500 |
+3 |
500-999 |
5 |
|
- |
+4 |
≥1000 |
Posteriormente, foi elaborada uma tabela com todos os indivíduos, para comparar se as técnicas apresentaram, ou não, o mesmo escore para proteinorraquia e glicorraquia em uma mesma amostra. Foi criada uma coluna de resultante composta por 0 e 1, com 0 representando igualdade entre as técnicas e 1 como divergência entre as técnicas.
Por meio do software R, com 0,05 de significância, calculou-se a proporção de divergência entre as técnicas e depois foi criado um intervalo de confiança (IC) para estas proporções.
Esses resultados não corroboram com os achados de estudos similares realizados na medicina, nos quais foi verificada alta relação de proteinorraquia e glicorraquia entre as técnicas de fita urinária e bioquímica úmida (Joshi et al., 2013; Noman et al., 2021; Manjunath et al., 2022). Entretanto, estes autores justificam que essa relação está condicionada a amostras cujos valores de proteína são superiores a 100 mg/dL e os de glicose inferiores a 40-50 mg/dL. Nos resultados ora obtidos, 95% da proteinorraquia estavam abaixo de 100 mg/dL e 86% da glicorraquia estavam acima de 40 mg/dL, o que pode ter sido a causa dos baixos índices de relação observados entre as técnicas.
Observou-se ainda que a fita urinária tende a subestimar a proteinorraquia (54%; 12/22) e superestimar a glicorraquia (63%; 14/22), quando os resultados foram comparados com os da bioquímica úmida. Estas observações não foram relatadas nas pesquisas com seres humanos (Joshi et al., 2013; Noman et al., 2021; Manjunath et al., 2022). Sabe-se que a hiperproteinorraquia e a hipoglicorraquia estão relacionados a distúrbios da barreira hematoencefálica e ao consumo por aumento de metabolismo, respectivamente (Di Terlizzi, 2006; Di Terlizzi, 2009). Assim exalta-se a importância dos achados deste trabalho, uma vez que a fita urinária poderá levar a valores falsamente normais de proteínas e de glicose. Os resultados errôneos poderão ocasionar falhas na investigação diagnóstica.
Portanto, a técnica de mensuração de proteínas ou glicose pela fita urinária não deve ser utilizada na análise do FCE de cães com afecções neurológicas centrais. No conhecimento dos autores, este é o primeiro estudo que avalia a eficácia da fita urinária na mensuração de proteína e de glicose no FCE de cães.
A fita urinária subestima os valores de proteinorraquia e superestima os de glicorraquia em relação aos valores obtidos por meio da bioquímica úmida. Portanto, não deve ser utilizada como método alternativo para mensuração destes parâmetros liquóricos em cães, uma vez que seus resultados não correspondem aos da técnica tradicional de bioquímica úmida.
Desta forma, devemos repensar o uso de métodos alternativos, uma vez que erros como esses podem direcionar incorretamente o diagnóstico do paciente. A aplicação de uma metodologia só deve ocorrer mediante a uma comprovação científica da eficácia desta.
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