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10 jul. 2025 | Prof. Dr. Luciano Henrique Giovaninni - Médico-veterinário especializado em nefrologia e urologia de cães e gatos. Autor do Tratado de Nefrologia e Urologia de Cães e Gatos.

Controle da fosfatemia na doença renal crônica em cães e gatos

Confira a importância do diagnóstico precoce e do ajuste nutricional já nos estágios iniciais da doença renal crônica (IRIS 1 e 2).

A Doença Renal Crônica (DRC) é uma das enfermidades mais relevantes em medicina veterinária de pequenos animais, com alta prevalência entre cães ou gatos, principalmente os senis. Embora muitas vezes silenciosa em suas fases iniciais, a DRC já promove alterações importantes no metabolismo mineral e ósseo, especialmente no balanço de fósforo, cálcio e vitamina D, sob influência do paratormônio (PTH)  e do fator de crescimento de fibroblastos 23 (FGF-23), muitas vezes antes mesmo dos estádios azotêmicos, ou seja, da elevação da creatinina.

Este material tem como objetivo orientar o médico veterinário sobre a importância da identificação precoce da DRC em cães ou gatos, destacando a necessidade de atenção à fosfatemia mesmo nos estádios iniciais, enfatizando a importância do ajuste e monitoramento nutricional, que é pilar fundamental para conter a progressão dos distúrbios relacionados ao metabolismo mineral e ósseo, reduzindo as complicações associadas e promovendo maior qualidade de vida e longevidade aos gatos e cães com DRC.

Fisiopatologia e estadiamento da doença renal crônica em cães e gatos

A DRC é caracterizada pela perda irreversível e progressiva de néfrons, resultando na redução da massa funcional renal e consequente diminuição da taxa de filtração glomerular (TFG), o que desencadeia uma série de modificações hemodinâmicas, inflamatórias e endócrinas, que inicialmente tendem a compensar a redução da massa funcional renal, mas que, com o tempo, contribuem para a progressão da DRC. Entre essas modificações estão a hiperfiltração e hipertrofia glomerular compensatórias, ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, e os distúrbios do metabolismo mineral e ósseo (DMO-DRC), marcados por aumento do PTH e do FGF-23, para manter a fosfatemia dentro da normalidade.

Com a progressão da DRC (evolução em estádios), devido ao maior comprometimento da função renal, ou seja, redução da função renal residual, há a retenção de solutos urêmicos (favorecendo uremia), distúrbios hídricos, acidobásico,  eletrolíticos e pressóricos, piora dos DMO-DRC, além do desenvolvimento de anemia, com comprometimento da qualidade de vida.

O estadiamento da DRC (Quadro 1), proposto pela International Renal Interest Society (IRIS), visa uniformizar e orientar as tomadas de decisões de monitoramento e tratamento da DRC, de acordo com a avaliação do grau de gravidade da doença, e por se basear na estimativa da massa funcional renal remanescente, os graus de DRC (estádios) são definidos pelas concentrações séricas de creatinina e SDMA, complementado pela avaliação da proteinúria e pressão arterial sistêmica (HAS) (subestádios). Deste modo é importante frisar que ˙há doentes renais crônicos cujas concentrações séricas de creatinina e SDMA estão dentro dos valores de referência, que é o estádio 1 (Quadro 1).

Quadro 1. Estadiamento e sub-estadiamento IRIS (International Renal Interest Society) da doença renal crônica (DRC) em cães e gatos:

Estadiamento da doença renal crônica
Estádio Denominação Creatinina (mg/dL)

SDMA (µg/dL)

Comentários
I DRC não azotêmica

Gatos < 1,6

Cães < 1,4

< 18

Assintomáticos, exceto proteinúria se apresentar síndrome nefrótica ou hipertensão arterial sistêmica.

Monitoramento em pacientes estáveis, pelo menos semestralmente.

Alvo para a fosfotemia: 4,5 mg/dL.

II DRC com azotemia moderada

Gatos 1,6 a 2,8

Cães 1,4 a 2,8

Gatos 18 a 25

Cães 18 a 35

Podem apresentar perda de peso, apetite seletivo.

Monitoramento em pacientes estáveis, pelo menos a cada quatro meses.

Alvo para a fosfatemia: até 4,5 mg/dL.

III DRC com azotemia moderada 2,9 a 5,0

Gatos 26 a 38

Cães 36 a 54

Sinais clínicos descritos no estádio II de forma mais evidente, para pacientes com diagnóstico tardio.

Monitoramento em pacientes estáveis, pelo menos trimestralmente.

Alvo da fosfatemia: até 5,0 mg/dL.

IV DRC com azotemia importante > 5,1

Gatos > 38

Cães > 54

Sinais clínicos descritos no estádio III, além de sintomas gestrentéricos (relacionados a uremia), desidratação, anemia, acidemia, hiperfosfatemia, principalmente em pacientes com diagnóstico tardio.

Mais predispostos a necessidade de internação.
Frequência de retornos para monitoramento em pacientes estáveis, pelo menos mensalmente.

Alvo da fosfatemia: até 6,0 mg/dL.

Sub-estadiamento razão proteinúria:creatinina urinárias
Espécie Não proteinúrico Proteinúrico limítrofe Proteinúrico
Canina < 0,2 0,2 a 0,5 > 0,5
Felina < 0,2 0,2 a 0,4 > 0,4
Sub-estadiamento pressão arterial sistólica (risco de lesão em órgãos alvo)
Classificação

Normotenso
(risco mínimo)

Pré-hipertenso
(risco baixo)

Hipertenso
(risco alto)

Hipertenso importante
(risco importante)

Pressão arterial sistólica (mmHg) < 140 140 a 159  160 a 179 > 180

Uma questão bem importante "Então por que determinamos a presença de DRC em cães ou gatos no estádio 1?" Essa resposta envolverá a presença de três marcadores importantes de DRC, que já estarão presentes enquanto ainda não há azotemia, que são:

  1. alteração morfológica renal, ou seja, presença de lesão macroscópica em um ou ambos os rins;
  2. proteinúria renal patológica, ou seja, presença de proteína urinária cuja origem se refere essencialmente a passagem de proteínas pela barreira de filtração glomerular (Quadro 1);
  3. hipertensão arterial sistêmica (HAS), ou seja, como os rins são um dos órgãos alvo para lesão decorrente da HAS, é prudente que na presença deste distúrbio já se inicie com o monitoramento da alta possibilidade de DRC (Quadro 1).

Fisiopatologia e como obter os alvos da fosfatemia nos DMO-DRC em cães e gatos

Na DRC, a redução na excreção urinária de fósforo induz ao balanço de fósforo positivo, que ainda que discreto, é estímulo para a secreção de FGF-23 e PTH, uma vez que estes hormônios têm ação fosfatúrica. Entretanto, a secreção contínua destes hormônios acarreta o distúrbio denominado de hiperparatireoidismo secundário renal (HPTSR), levando à redução da síntese de calcitriol (metabólito ativo da vitamina D) e à remodelação óssea patológica, além da hipocalcemia, que em conjunto irão acelerar a progressão da doença e comprometer a longevidade. E mesmo em pacientes com fosfatemia dentro da faixa de referência, estes mecanismos deletérios já podem estar em curso.

Deste modo, recomenda-se que a fosfatemia seja mantida até os alvos, por estádio (Quadro 1), assumindo-se que se a fosfatemia supera estes valores alvo, já esteja ocorrendo HPTSR. Assim, a atenção ao estado nutricional dos pacientes é ponto chave para o sucesso desta abordagem, visto que a única forma de se ajustar o balanço do fósforo é pela via gastrentérica, recomendando-se que a avaliação clínica quanto ao estado nutricional seja adotada em todas as visitas, baseando-se nos seguintes dados:

Anamnese

  1. Importante que se obtenham informações quanto à quantidade e o balanceamento do alimento em uso, pois, por exemplo, se o balanceamento está adequado, mas o paciente está ingerindo maior quantidade que a necessária, consequentemente estará ingerindo mais fósforo, e por consequência o controle do balanço de fósforo pode mais ser difícil .
  2. Balanceamento da dieta utilizada, visto que diferentes aspectos relacionados à formulação são importantes. Neste contexto decidimos por citar apenas alguns destes fatores, relacionados ao fósforo: 
  • A fonte de fósforo utilizada na dieta é predominantemente orgânica ou inorgânica? Consideração importante, pois o fósforo inorgânico tem mais alta absorção intestinal e disponibilidade, favorecendo maiores fosfatemias, e pior controle
  • A relação entre cálcio e fósforo da dieta está adequada? O que também é ponto chave, visto que se houver desequilíbrio nutricional na proporção entre cálcio e fósforo ingeridos, poderá ocorrer maior disponibilidade de um destes nutrientes, acarretando hiperfosfemia ou hipercalcemia, ambas sendo deletérias para a DRC. Em gatos há estudos que demostraram que dietas com ajuste da oferta de fósforo reduziram os valores séricos de PTH e FGF-23, mesmo em estádios iniciais da DRC.

Os alimentos da linha PremieR® Nutrição Clínica Renal Cães Adultos Porte Pequeno, Renal Cães Adultos Porte Médio & Grande, Renal Gatos Adultos e Renal Gatos Adultos Estágios Iniciais possuem teores controlados de fósforo para mitigar os efeitos do hiperparatireoidismo secundário renal.

Exame físico

Além do peso do paciente, necessariamente devem ser incluídos a avaliação do escore de condição corporal (ECC) e escore de massa muscular (EMM), e todos estes dados devem ser anotados na ficha clínica. Lembrem-se que estamos lidando com uma doença crônica, na qual o ajuste nutricional já demonstrou vários benefícios. Então garantir nutrição e estado nutricionais adequados desde o primeiro momento, principalmente em diagnósticos precoces, é fundamental para que ocorra manutenção de qualidade de vida e aumento da longevidade.

Para avaliação do escore de condição corporal e escore de massa muscular, a PremieRvet® disponibiliza Materiais de Apoio ao atendimento.

Exames complementares

O controle da fosfatemia deve ser entendido como um pilar fundamental do manejo da DRC em cães e gatos, pois está diretamente relacionado à preservação da função renal remanescente, à qualidade de vida e à longevidade dos pacientes. Assim, o monitoramento da fosfatemia deve ocorrer de forma regular desde os primeiros estádios da DRC, com metas claras conforme o estadiamento da IRIS (Quadro 1). 

Lembre-se que a dosagem do fósforo sérico é obtida por método bioquímico colorimétrico, e neste monitoramento você comparará o paciente com ele mesmo, e por isso temos que evitar que haja mudanças de resultados por fatores inerentes a análise da amostra. Recomendamos que se tenha atenção aos seguintes itens:

  • Seguir com as dosagens preferencialmente no mesmo laboratório de confiança do clínico veterinário, considerando-se o controle de qualidade interno na execução dos exames.
  • Fazer coleta em jejum de 6 a 10 horas, uma vez que fatores como lipemia, bem como o próprio fósforo ingerido, irão interferir no resultado obtido, falseando a interpretação.
  • Fazer coleta da amostra de sangue preferencialmente no mesmo horário das anteriores, visto que já se demonstrou que a fosfatemia segue um ciclo circadiano.
  • Não fazer a dosagem de fósforo em amostras nas quais ocorre hemólise, pois a concentração intracelular de fósforo é alta, e a hemólise acaba por liberar este fósforo para o soro, falseando resultados mais elevados.

Uma vez que todas estas etapas estejam bem definidas, e ainda assim a fosfatemia esteja acima do alvo preconizado por estádio (Quadro 1), o que geralmente ocorre nos estádios 3 e 4, então pode-se recorrer ao uso dos quelantes intestinais de fósforo, que devem ser utilizados juntamente da refeição. Atualmente, no Brasil, temos acesso na rotina, para cães e gatos, aos seguintes  quelantes intestinais de fósforo:

  • Hidróxido de alumínio

Dose: até 60mg/kg/dia, dividida nas refeições

Efeitos colaterais: constipação, e anemia microcítica (deste modo, recomenda-se o monitoramento com realização de hemogramas)

  • Carbonato ou acetato de cálcio:

Dose: até 60mg/kg/dia, dividida nas refeições

Efeitos colaterais: hipercalcemia (deste modo recomenda-se o monitoramento dom as dosagens de cálcio total e cálcio iônico) 

Conclusão

Tenha certeza que se você estiver atento ao estado nutricional de seus pacientes com DRC, e sequenciar o monitoramento aqui proposto, seus resultados serão ainda melhores, e quem irá se beneficiar são seus pacientes, pois terão manutenção da sua qualidade de vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Geddes RF et al. J Vet Intern Med. 2013;27(2):234–241.

Parker VJ et al. J Vet Intern Med. 2017;31(3):791–798.

Elliott J et al. J Small Anim Pract. 1998;39:78–85.

IRIS (International Renal Interest Society). Diretrizes 2023. www.iris-kidney.com.

Crivellenti LZ, Giovaninni LH, Tratado de Nefrologia em Cães e Gatos, 2021, 312-321 e 325-352.